BEAR, de Igor Cabrardo, é um daqueles contos de horror que abraçam a crítica social com força e sem anestesia. Afinal, quem nunca se sentiu intruso em um grupo de “amigos” e percebeu que estava cercado por pessoas que só te “toleram”? Só quem viveu isso sabe o quanto é desconfortável, além de afetar a autoestima e a saúde mental de uma pessoa.
E quem diria que um conto com apenas 19 páginas, que você devora em menos de 30 minutos, teria o poder de cutucar feridas tão específicas e denunciar comportamentos abusivos disfarçados de amizades? E tudo isso enquanto você mergulha em uma atmosfera tensa, onde o verdadeiro monstro pode estar do seu lado — sorrindo e pedindo mais uma rodada.
BEAR não quer apenas te provocar, mas te deixar inquieto reflexivo. Mesmo sendo um conto de horror ele tem um propósito, jogar luz sobre algumas dinâmicas sociais perversas que muitos LGBTQIAPN+ enfrentam, como violências que moram em pequenos gestos, nas microagressões e nas falsas amizades, que muitos não admitem, mas que machucam e demoram a cicatrizar.
E confesso que fico feliz quando autores independentes brasileiros dominam o horror e usam a crítica social a seu favor. É uma das formas mais impactantes de discutir temas delicados com profundidade e com responsabilidade.
Atenção! BEAR é um conto que aborda temas sensíveis e que pode causar gatilhos. Por isso ele não é recomendável para pessoas sensíveis ou que viveram (ou vivem) algo parecido. Por isso, neste artigo, irei abordar os principais assuntos presentes no conto, sem spoilers — mas com a intensidade que ele merece.
Vem comigo porque o Questão D tá On!

Gaslighting entre Amigos também é Abuso
O conto gira em torno de Ícaro, um homem gay que não se encaixa nos moldes idealizados por seus “amigos”, corpos esculpidos na academia. Além de serem frequentadores assíduos de baladas onde 97% do público é padrão. É exatamente nessas saídas que Ícaro se sente isolado. Enquanto os outros se divertem, ele é deixado de lado, se tornando alguém invisível.
E as raras vezes em que Ícaro sugere um lugar diferente, onde ele também pudesse se divertir, era logo ignorado ou criticado. E sempre que tentava argumentar, o grupo fazia parecer que ele estava fazendo uma tempestade em copo d’água, distorcendo totalmente a sua percepção da realidade — uma forma cruel de gaslighting, vindo de pessoas que supostamente deveriam acolhê-lo e apoiá-lo. Que Show da Xuxa é esse Brasil?
Quem já passou por isso reconhece na hora frases como: “você tá exagerando”, “ninguém tá falando isso”, “só você que não está se divertindo”. Ao ponto de você começar a acreditar que é mesmo um estraga-prazer. Mas a verdade é outra: o problema não está em você, e sim nas pessoas erradas que te cercam.
Inclusive, uma das red flags de amizades abusivas é exatamente essa falsa sensação de que “eles são tudo o que você tem”. Cuidado. Amigos de verdade querem te ver bem e não controlar você. Por mais difícil que pareça, a melhor saída é se afastar e seguir seu caminho, bem distante deles — sua saúde mental agradece.

BEAR | Identidade, Pertencimento e o Sabor da Liberdade
Você conhece aquela frase: “Se não for somar, some”? Pois é… ela se aplica perfeitamente aqui. Até porque, o sentimento de pertencimento é algo saudável e anda de mãos dadas com a liberdade de ser quem você é, sem cobranças ou exigências tóxicas.
E quando Ícaro decide romper com seu grupo de “amigos”, ele começa a saborear algo novo: a liberdade. Ao entrar na boate Bear’s Cave, ele se reconhece nos corpos ao seu redor — grandes, pedudos, barbudos. E pela primeira vez, sente-se bonito e se reconhece dentro da comunidade dos ursos. É como se, naquele momento, ele estivesse bebendo um elixir revigorante, com uma sensação de pertencimento que ele nunca tinha experimentado.
Mas atenção! Quando essa transição acontece de forma brusca e é vivida sozinha, é preciso redobrar o cuidado. Porque começar um novo ciclo do zero, depois de um período conturbado, pode deixá-lo vulnerável.
E é ai que mora o perigo, porque uma pessoa vulnerável vira alvo fácil de predadores que estão à espreita, cançando novas presas, para transformá-las em seu objetos de prazer — sem empatia, sem consentimento e sem reciprocidade. E é sobre isso que BEAR vem falar: os riscos reais de estar exposto, quando tudo o que você quer é recomeçar sua vida.

BEAR | O Horror como Ferramenta de Denúncia
Precisamos falar sobre consentimento nas relações íntimas. Até porque tudo aquilo que não tem consentimento é violência sexual. E sim, é um assunto delicado, mas o conto se propõe a cutucar essa ferida.
Lembra do gaslighting que eu mencionei lá no íncio do artigo? Pois é, aqui ele volta com mais força, mas para manipular e praticar violência sexual. Por isso, frases como “eu sei que você está gostando”, ou “não estraga o clima”, são comuns na boca de abusadores que usam essas falácias apenas para satisfazer seus fetiches, sem se importar com o outro.
E quando a vítima é uma pessoa LGBTQIAPN+, a violência ganha camadas ainda mais cruéis. Não é só a vulnerabilidade emocional que pesa, mas também o julgamento dentro da própria comunidade, que muitas vezes silencia, minimiza ou até culpabiliza as vítimas de violência sexual. E o resultado? É um isolamento ainda mais doloroso, com feridas profundas e que dificultam os pedidos de ajuda…
Embora o conto BEAR, de Igor Cabrardo não trate diretamente sobre o tema, é essencial fazer um alerta — principalmente quando o assunto é vulnerabilidade durante relações íntimas. Infelizmente, ainda são comuns os casos de stealthing — prática em que o preservativo é retirado sem o conhecimento e consentimento da outra pessoa. Saiba que essa conduta no Brasil é configurada como crime, sendo classificada como violação sexual mediante fraude, com pena de 1 a 4 anos de reclusão.
Por isso, fortalecer nossa rede de apoio dentro da comunidade LGBTQIAPN+ é algo urgente. Porque a informação é uma das nossas maiores armas contra o abuso, e contra o silenciamento desses casos. Infelizmente vivemos em uma sociedade conservadora que, todos os dias, tentam apagar aquelas conquistas que levaram tempo, e até algumas vidas, para alcançá-las. Então fortalecer-se é uma forma de resitência. E o silêncio nunca deve ser imposto a ninguém.

A verdade é que BEAR, de Igor Cabrardo, é um conto que só quem já foi invisibilizado por “amigos”, ou sentiu-se estranho seu grupo ou precisou reconstruir a autoestima do zero, vai entender. É um horror íntimo, silencioso, que muitos LGBTQIAPN+ vivem (ou viveram) em segredo — e, pior, com culpa.
BEAR não vem para oferecer um final feliz nos moldes clássicos. Ele te entrega uma espécie de justiça simbólica: crua, feroz e sem redenção. Uma espécie de acerto de contas com quem normalizou silêncios, apagamentos e dores em nome dos padrões heteronormativos.
É um conto que valida a raiva, a frustração e até o desejo de vingança simbólica. Porque há momentos em que, no lugar de cuidado e acolhimento, o que se recebe é um abuso. E isso precisa ser nomeado, enfrentado e exposto.
E lembre-se: você não está sozinho. Existe apoio, existe escuta e pessoas que realmente se importam com você. Buscar ajuda é um ato de coragem, e você merece ser cuidado

Agora quero saber de você. Já leu BEAR de Igor Cabrardo? Como foi sua experiência? Você identificou outro tema que não mencionei aqui? Me conta que eu quero saber.
Compartilhe este artigo com uma amigo que curte contos de horror com críticas sociais, ou para aquele crush que curte autores independentes brasileiros. Quem sabe assim ele não te nota.
Até o próximo post 😉

Ficha Técnica
Título: BEAR
Gênero: Horror, Ficção Erótica
Autor: Igor Cabrardo
N° de Páginas: 19
Idioma: Português
Formato: Epub (Kindle)
Classificação Indicativa: A16-18
Data de Publicação: 27 de junho de 2020
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